segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Greve dos Psicólogos

Marcelo Mário de Melo



Decididos a entrar em greve, os psicólogos achavam importante que o movimento fosse desencadeado juntamente com os psicanalistas. Mas os primeiros passos nesse sentido não foram fáceis. Havia uma resistência não declarada dos psicanalistas, preocupados em não serem identificados como psicólogos. A seu ver, e recorrendo a uma hierarquização eclesiástica, se eles pudessem ser considerados padres, cônegos, monsenhores, bispos, arcebispos, cardeais ou mesmo papas, os psicólogos não passariam de oblatos ou diáconos. As sessões de análise da greve se multiplicavam entre as representações dos psicólogos e dos psicanalistas, sempre rodando em círculos, como se na procura de algum incidente traumático fugaz e de difícil identificação. Mas, finalmente, se chegou ao acordo entre os dois segmentos, independentemente das suas diferenças e introjeções de status. A greve seria identificada como dos psicólogos e dos psicanalistas. Foi esta a fórmula habilidosa encontrada para manter a unidade e as distinções.

Desencadeada a greve, os psicólogos e psicanalistas contaram com o apoio de uma parte dos psiquiatras. Outra parte não se solidarizou, porque não aceitava a própria existência daqueles profissionais. No seu entender, eles não passavam de “padres sem batina”, que lhes tinham arrebatado uma parte da clientela. Por sua vez, os padres mais antigos ocuparam os púlpitos em virulenta campanha, apelando para que não fosse atendida nenhuma reivindicação dos grevistas. “Depois que os psicólogos e psicanalistas passaram a existir – diziam eles -, os confessionários se esvaziaram”. Mas vigários modernosos e negocistas não concordaram com isso, afirmando que o problema tinha ocorrido devido à falta de um marketing religioso arrojado. “Se tivéssemos desencadeado uma ação publicitária permanente, ressaltando o caráter gratuito do nosso atendimento no confessionário, dramatizando o tormento do sentimento de culpa e deixando bem claro que nós, padres, detemos com exclusividade o poder da penitência e do perdão, atributo que os psicólogos e psicanalistas não possuem, a situação não seria esta. Fomos incompetentes na administração da franquia divina, não soubemos fidelizar a clientela e, agora, estamos correndo atrás do prejuízo”. Outros integrantes da comunidade dos padres se manifestaram solidários à greve. Uns, dizendo que para um ser humano conviver com toda a sorte de problemas e encucações derramados na intimidade de um confessionário, mesmo tendo procuração divina, somente com apoio terapêutico. Outros, afirmando ser impossível suportar o esvaziamento do confessionário sem recorrer à intimidade da terapia, que administrava a falta e propiciava um clima semelhante.

Outras tendências religiosas se manifestaram, engrossando o caldo da confusão. Pais e mães de santo, babalorixás e ialorixas de todas as casas, acompanhados de pajés de todas as tribos, ocuparam as ruas em noitadas de toques, oferendas, despachos e pajelanças, reivindicando serem reconhecidos como psicoterapeutas. Acrescentaram que possuíam franquias nacionais e internacionais de deuses afro-brasileiros, africanos, tupi-guaranis e latinoamericanos. Seguiram-se as manifestações dos capoeiristas e iogues, exigindo o seu reconhecendo como terapeutas do corpo e atraindo com objetivo idêntico os representantes de maracatus, afoxés e uma infinidade de grupos de dança e luta marcial.

Depois de uma semana de greve, os clientes dos psicólogos e psicanalistas exigiram uma trégua para serem atendidos. Como não obtivessem uma resposta, rebelaram-se e começaram a promover nas ruas um ruidoso quebra-quebra de divâs e sofás, acompanhado de rasga-rasga de almofadas, tatames e tapetes. Os fabricantes e revendedores de móveis e almofadas exultaram com a iniciativa e infiltraram no movimento uma série de agentes, estimulando destruições mais amplas, incluindo mesas, estantes, toalhas, lençóis etc.

Ante a cobrança por algum atendimento durante o processo grevista, os psicólogos e psicanalistas argumentaram que agora não tinham mais divâs, sofás, nem almofadas, tatames e tapetes disponíveis. Os pacientes apresentaram a solução alternativa do atendimento nos bancos de praça, que passaram, imediatamente, a ocupar. Isto provocou a reação dos namorados e dos mendigos, que afirmaram serem os usuários mais antigos do espaço e não admitirem, agora, perde-lo por causa da greve. A situação ia degenerar em conflito, com a entrada em cena dos desocupados e dos malandros, solidários com os namorados e mendigos. Antes que eles pudessem tomar qualquer iniciativa, porém, todas as praças foram ocupadas por forças policial-militares.

Mas essa intervenção, que se apresentou como uma forma de evitar violências, passou a ser o centro de uma complicação ainda maior. Obrigados a cumprir a função de vigias de praça, os policiais se sentiram diminuídos e, afetados na sua auto-estima, foram tomados por uma depressão e uma regressão generalizadas. Soldados, cabos, sargentos e oficiais de todas as estrelagens eram vistos acabrunhados nos cantos, prostrados em posição fetal, tomando cachaça na mamadeira, ciscando no chão, falando como bebês, gritando por papai e mamãe, brincando de bang-bang e de tiro ao alvo com os revólveres. Nessa brincadeira começaram a se multiplicar os feridos e os cadáveres, para o espanto e o maior desespero dos policiais infantilizados, que soltavam as armas e caiam em pranto, desesperados. Convocadas tropas do exército, da marinha e da aeronáutica, os policiais foram alvejados com sedativos, desarmados e recolhidos.

No decorrer da greve surgiu um fenômeno natural que intrigou a comunidade científica, notadamente os astrônomos e os meteorologistas. Desde que as praças passaram a ser ocupadas pelos clientes dos psicólogos e psicanalistas, a lua, simplesmente, deixou de aparecer, como se estivesse prestando solidariedade aos namorados e mendigos. Coisa que, para alguns defensores da influência dos ciclos lunares no comportamento animal e humano, não deixava de trazer um aspecto positivo:
– Já pensaram numa greve doida dessas rolando na força da lua, com esse monte de gente pirada sem nenhuma assistência? A natureza sabe o que está fazendo.

Enquanto isto, desenvolvia-se no meio dos grevistas um grave problema político-psicológico. Uma parte dos psicólogos e psicanalistas passou a apresentar o sintoma da contra-transferência, parecido com o fenômeno da transferência afetiva que ocorre no paciente, em relação ao analista. Os terapeutas começaram a se colocar como pacientes e a incorporar suas reivindicações de atendimento, vivendo uma profunda crise de identidade, em alguns casos apontando para verdadeiras cisões esquisofrênicas. Alguns saíram dos piquetes grevistas e se incorporaram à legião dos clientes reivindicantes. Outros, embora sem chegar a tais extremos, apresentavam uma certa duplicidade de comportamento e alguma identificação com os clientes, pelo fato de também se submeterem a processos de análise ou psicoterapia.

Na área militar, a crise se aguçou profundamente. A depressão e a infantilização avançaram sobre os novos contingentes, com a elevação dos registros de ferimentos e mortes, devido às brincadeiras de bang-bang. Mas os soldados infantilizados de tendências normóides se deliciavam em brincadeiras nas ruas, numa alegre parceria com a garotada. Os do exercito brincando de marcha-soldado, os da marinha construindo barquinhos de papel, os da aeronáutica fazendo aviõezinhos e pipas. Esta situação levou a que a greve dos psicólogos e psicanalistas fosse considerada assunto de segurança nacional, que exigia uma solução ultra-rápida. E se desenvolveram as pressões de todos os lados para que o movimento fosse encerrado.

Entre as lideranças dos grevistas, uma acirrada polarização era capitaneada por duas tendências principais. Os psicanalistas achavam que a greve tinha-se tornado um fenômeno muito complicado, sendo necessário fazer uma pausa, analisar mais a situação e, com muito cuidado, programar os passos seguintes. O pessoal da análise transacional, os bioenergéticos e os biodançantes eram contra a suspensão e propunham mais movimento e mais ação. Foi marcada uma assembléia geral num estádio, para se aprofundar as propostas e se chegar a uma conclusão. Paralelamente, seria realizada uma Feira de Psicologia e Psicanálise, onde todos poderiam vender o seu peixe e pescar clientes.

Na Feira havia ofertas para todos os gostos. Era uma infinidade de estandes, barracas e tendas, com consultórios improvisados, onde se realizavam entrevistas e sessões para captação de novos clientes, garantindo-se o atendimento à clientela tradicional. Os psicanalistas se situaram numa ala diferenciada, contando com o patrocínio de uma empresa moveleira que acabara de lançar um novo tipo de divã: o Doctor Freud. Representavam-se as sub-alas dos kleinianos, yunguianos, lacanianos, reichianos, carusianos, winicottianos. Os psicólogos ocupavam uma área imensa e repleta de subdivisões. Os gestaltistas, analistas transacionais e rogerianos se apresentavam em três grandes estandes. Seguiam-se bioenergética e biodança, com o patrocínio do Biotônico Fontoura, que criou também a seção Biotudo, onde foram distribuídos: psicodrama, yoga, aromaterapia, florais de Bach, massagem ayuvérdica, ritmoprática, transpessoal, terapia de vidas passadas, projeciologia, meditação transcendental, programação neurolinguística, reiki, feng-shui, grito primal, sexercícios e dança do ventre. A única nota dissonante na organização do evento foi a instalação da barraca da biodança vizinha à da meditação transcendental, gerando uma gravíssima incompatibilidade sonora inicial, somente superada com a posterior relocalização.

Paralelamente à Feira, desenvolviam-se as discussões de avaliação da greve, suas complicações e seus rumos. Um psicanalista defendeu o encerramento:

- A situação está tão confusa, que se a gente ajudar a encontrar solução para todas as complicações surgidas a partir desta greve, já será uma vitória.

Outro grevista contra-argumentou exaltado:

- Nada de recuar. Só encerraremos a greve quando todas as nossas reivindicações forem atendidas.

Amplamente aplaudido, ia alinhar as reivindicações, para refrescar a memória dos manifestantes, mas parou estatelado e mudo, como se tivesse visto um fantasma. Depois de mais de um minuto nesse transe, desesperado, recuperou a voz e apelou para a platéia:

- Deve ser o estresse da greve. Me deu um branco e não consigo me lembrar das nossas reivindicações. Peço a ajuda de outro companheiro.

O grevista mais próximo subiu à tribuna, mas também permaneceu estático, sem se lembrar de nada. Todos começaram a se olhar uns para os outros, com ares de espanto e apelo. Depois de um grande silêncio, alguém diagnosticou:

- Deu um branco coletivo. Ninguém se lembra das nossas reivindicações. É amnésia grevista generalizada.

Passada a estupefação inicial, o coordenador da assembléia declarou que continuavam abertas as inscrições para os falantes. Um psicólogo se inscreveu e questionou:

- Mas como é que a gente vai poder continuar com esta greve ou encerrá-la direito, sem saber quais são as nossas reivindicações?

O orador seguinte respondeu à indagação:

- Isto não tem muita importância, porque greve é como terapia ou análise: a gente começa, mas nunca sabe quando vai terminar.

(2001)

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